Eu odeio sentir que estou perdendo tempo.

Hoje antes de uma reunião que atrasou, fui ler Carlos Drummond de Andrade. Olha que bela leitura eu tive a benção de fazer. Faça também!

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O sotaque das mineiras . Carlos Drummond de Andrade

O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar. Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar lindo (das mineiras) ficou de fora?
Porque, Deus, que sotaque!
Mineira deveria nascer com tarja preta avisando:
ouvi-la faz mal à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso?
Assino achando que ela me faz um favor.

Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.

Preferem abandoná-las no meio do caminho, não dizem:
pode parar, dizem: ‘pó parar’.
Não dizem: onde eu estou?, dizem: ‘ôncôtô’.

Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem lingüisticamente falando, apenas de uais, trens e sôs.
Digo-lhes que não.
Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade.
Fala que ele é bom de serviço.

Pouco importa que seja um juiz ou jogador de futebol.
Mineiras não usam o famosíssimo ‘tudo bem’.
Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra:
– ‘Cê tá boa?’.
Para mim, isso é pleonasmo.
Perguntar para uma mineira se ela tá boa é desnecessário.
Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada.
Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer:
– ‘Mexe’ com isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc.).
O verbo ‘mexer’, para os mineiros, tem os mais amplos significados..
Quer dizer, por exemplo, trabalhar.
Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido.
Querem saber o seu ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir.
Aqui ninguém consegue nada.
Você não dá conta.
‘Sôcê’ (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:
– ‘Aqui’, não vou dar conta de chegar na hora, não, ‘sô’.
Esse ‘aqui’ é outro que só tem aqui.
É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase.
É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção.
É uma forma de dizer:
– Olá, me escutem, por favor.
É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.
Mineiras também não dizem apaixonada por.
Dizem, sabe-se lá por que, ‘apaixonada com’.
Soa engraçado aos ouvidos forasteiros.
Ouve-se a toda hora:
– Ah, eu apaixonei ‘com’ ele…
Ou: Sou doida ‘com’ ele (ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro).
Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe.
É um tal de ‘bonitim’, ‘fechadim’, e por aí vai.
Já me acostumei a ouvir:
– E aí, ‘vão?’. Traduzo:
– E aí, vamos?
Não caia na besteira de esperar um ‘vamos’ completo de uma mineira.
Não ouvirá nunca.
Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira.
Nada pessoal.
Aqui certas regras não entram.
São barradas pelas montanhas.
Por exemplo, em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai dizer:
– Eu preciso ‘de’ ir.
Onde os mineiros arrumaram esse ‘de’, aí no meio, é uma boa pergunta.
Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe.
Asseguro que sim, com escritura lavrada em cartório. Deixa eu repetir, porque é importante.
Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum.
Entendam…
Você não precisa ir, você precisa ‘de’ ir.
Você não precisa viajar, você precisa ‘de’ viajar.
Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:
– Ah, mãe, eu preciso ‘de’ ir?
No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um ‘tanto de coisa’.
O supermercado não estará lotado, ele terá um ‘tanto de gente’.
Se a fila do caixa não anda, é porque está ‘agarrando’ lá na frente.
Entendeu?
Agarrar é agarrar, ora!
Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará:
– ‘Ai, gente, que dó’.
É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras.
Não vem ‘caçar confusão’ pro meu lado.
Porque devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro ‘caça confusão’.
Se você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele ‘vive caçando confusão’.
Para uma mineira falar que algo é muitíssimo bom vai dizer:
– ‘Ô, é sem noção’.
Entendeu?
É ‘sem noção!
‘ Só não esqueça, por favor, o ‘Ô’ no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção,
entendeu?
Capaz…
Se você propõe algo ela diz:
– ‘Capaz’!!!
Vocês já ouviram esse ‘capaz’?
É lindo.
Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer ‘ce acha que eu faço isso!?’
Com algumas toneladas de ironia…
Se você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá:
-‘Ô dó dôcê’.
Entendeu?
Não?
Deixa para lá.
É parecido com o ‘nem…’.
Já ouviu o ‘nem…?
‘ Completo ele fica:
– Ah, ‘nem’…
O que significa?
Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum.
Você diz:
– Meu amor, ‘cê’ anima ‘de’ comer um tropeiro no Mineirão?
Resposta:
– ‘Nem…’.
Ainda não entendeu?
Uai, nem é nem.
A propósito, um mineiro não pergunta:
– Você não vai?
A pergunta, mineiramente falando, seria:
– ‘Cê’ não anima ‘de’ ir?
Tão simples.
O resto do Brasil complica tudo.
É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem…
Falando em ‘ei…’.
As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o ‘ei’ no lugar do ‘oi’.
Você liga, e elas atendem lindamente:
– ‘Eiiii!!!’, com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade…
Tem tantos outros…
O plural, então, é um problema.
Um lindo problema, mas um problema.
Sou, não nego, suspeito.
Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras.
Aliás, deslizes nada.
Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão.
Se você, em conversa, falar:
– Ah, fui lá comprar umas coisas…
– ‘Que’ s coisa?’ – ela retrucará.
O plural dá um pulo.
Sai das coisas e vai para o que.
Ouvi de uma menina culta um ‘pelas metade’, no lugar de ‘pela metade’.
E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa,confidenciará:
– Ele pôs a culpa ‘ni mim’.
A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas.
Ontem, uma senhora docemente me consolou:
‘preocupa não, bobo!’.
E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam.
Talvez se espantassem se ouvissem um: ‘não se preocupe’, ou algo assim.
A fórmula mineira é sintética.
E diz tudo.
Até o tchau, em Minas, é personalizado.
Ninguém diz tchau pura e simplesmente.
Aqui se diz: ‘tchau pro cê’, ‘tchau pro cês’.
É útil deixar claro o destinatário do tchau.
Trem bão tambem demais sô….

4 respostas

  1. “Apaixonante” seu texto! Já tive muitas dificuldades por causa da linguagem oral. Isso porque, meu pai- que não preciso dizer que era das “antigas”, (se eu tenho 44, ele teria 73, se fosse vivo), nos obrigada a falar “corretamente”. Corretamente para ele, claro. O pior, é que ao ter aulas de Produção de Texto com o meu maravilhoso professor Reinaldo Fernandes de Brumadinho, aprendi sobre a Linguagem “adequada”. Puxa, mas aí eu já tinha 40 anos (universitária aos 40- lembra né?). Só ai fui entender porque algumas pessoas, me consideravam “metida”(pra nós mineirinhos), mais precisamente antipática mesmo. No auge da minha obediência a meu pai que tanto admirava e respeitava, sempre fui amante da linguagem formal, e até no Facebook, as pessoas, (principalmente minhas filhas), me criticam o tempo todo. Mas ai já compro uma briga, porque trata-se da linguagem escrita e essa é permitida aplicar ainda que numa rede social. Lembro-me do dia que, em uma aula do Prof. Reinaldo soltei uma famosa ( e infeliz) frase que é muito usada quando ouvimos alguém falar “errado” : Nossa! Essa foi de perfurar os meus tímpanos! E ele me advertiu! Nossa Raquel, quanto preconceito! Que vergonha! Ele então me explicou o porquê, e deu essa super aula de “Linguagem adequada”, por causa desse meu infeliz comentário. Porque ele percebeu que a maioria concordou comigo. Hoje quando ouço alguém dizer isso, se for íntimo meu, também dou uma “aulinha”, senão, lamento muito. Ele nem entrou muito no mérito do sotaque, mas mesmo assim, deu um passeio nas linguagens regionais e como tudo pode ser entendido se não está sob um olhar estrangeiro, digamos assim. Ele sempre citava Drummond que também sou “apaixonada”(para não fugir as origens) e com certeza vai adorar o seu texto. Vou recomendá-lo. Ele também é uma pessoa “apaixonante”, como você, com todo respeito de uma fã. Abraços! Raquel Valéria

  2. Nossa Bruno! Escrevi meu comentário sem os óculos, têm uns erros de digitação ai, não repare,rs! Não tem como editar,rs?

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